A divulgação científica precisa ir além da ciência
ou sobre como os sinais mostram que precisamos muito mais do que apenas fatos
Se tem algo que me deixa realmente chateado é a frase estampada na imagem acima. Muitos colegas divulgadores e divulgadoras que tem formação científica em áreas, principalmente, como biologia, química, física, poderiam estampar a fase acima, com a nuvem fofinha, em uma camisa (a arte é literalmente de uma camisa, que está a venda em uma loja on-line). As pessoas mostrariam para todos como a ciência está acima da sua opinião. É algo superior, imutável e….neutra. Bem, isso não só é uma inverdade como considero, no mínimo, uma visão ingênua de como a ciência foi socialmente construída ao longos dos últimos séculos. E no contexto político atual, acho que é algo que devemos lutar ativamente contra. A visão de que a ciência está acima do que as pessoas sentem ou pensam, mesmo de forma não racional, é a porta aberta para perdermos o debate político. E sem política, não temos viabilidade de construirmos uma ciência e divulgação científica mais democrática e inclusiva.
O choque de realidade para o novo progressismo
A eleição de Trump e seu fiel escudeiro Musk para um segundo mandato marca um novo momento da extrema direita no mundo. O que, associado à emergência climática, é um marco importante para o movimento progressista e democrático mundial. Segundo o filósofo e cientista político Marcos Nobre, em uma entrevista para o podcast Rádio Escafandro, precisamos sair do paradigma de apenas reclamar e achar que vai passar. Que a primeira eleição do Trump foi uma anomalia histórica, culpa — somente — da desinformação, da Cambridge Analytica, das redes sociais. Nobre defende que o novo progressismo mundial precisa partir em busca de pautas que sirvam para todos e não apenas contra o avanço da extrema direita. Precisamos entender este novo momento político que vivemos e partir em busca de novos caminhos, novas inspirações. Sim, não é fácil lutar contra um movimento político que, além de descaradamente mentir, quando perde pode partir para o golpe de estado. Não é trivial debater com alguém que nas vésperas de uma eleição municipal publica um atestado médico falso e quase vai para o segundo turno da maior cidade do país. Quem falou sobre isso recentemente em uma entrevista foi o pesquisador em linguística e semiótica Paolo Demuru, no episódio 145 do podcast Pauta Pública.
“No campo progressista se optou por um discurso muito racionalista, voltado a desmentir, debunking, que tende a mostrar que algo é falso através de dados, raciocínio lógico. É muito difícil você lutar contra o discurso mágico, extasiante, maravilhoso [da extrema direita], através da razão”
Para mim o paralelo é muito claro entre o grande desafio a ser enfrentado pelo campo progressista no contexto moderno e a ciência. Vou tratar aqui sobre dois pontos que considero essenciais para a reflexão sobre a divulgação científica nestes novos tempos. O primeiro é o sentimento de “pureza” do clube dos cientistas e divulgadores. O segundo é a falsa ideia de que quanto mais a pessoa tem formação e conhecimento de ciência, mais ela irá apoiar pautas da ciência. Vamos por partes.
O clube dos puristas
A antropóloga Rosana Pinheiro-Machado defendeu no livro “Amanhã vai ser maior” (Editora Planeta, 2019) que movimentos progressistas sempre são mais refratários a pessoas que pensam diferente do que a extrema direita. Não aceitamos as pessoas no nosso grupo, queremos apenas os "puros".
“O populismo autoritário de direita, esse sapo medonho, se veste de príncipe e não escolhe militante, mas apenas estende a mão e acolhe. Ele diz: “Vem, aqui você é aceito”, e oferece, no lugar do abandono do cotidiano alienado, a possibilidade de um movimento como o fascismo. Uma grande parte de nós do campo progressista tem feito, de modo sistemático, o oposto, rechaçando, ridicularizando e criticando tudo aquilo que não compreende”
Acho incrível como a descrição dela de como a esquerda está perdida, procurando pelo "trabalhador ideal", fazendo checklist para a entrada em seu clube ideológico, se parece muito com o que o "clube da ciência" faz em relação aos adeptos da pseudociência, afastando as pessoas. Na busca por selecionar quem faz parte do nosso “clubinho do mickey” da ciência acabamos estimulando o afastamento de pessoas que podem até achar a ciência importante, mas não são “puros”. Acredita em religião? Em astrologia? Chamem os seguranças do clube! Se continuarmos apenas incluindo os “puros”, tenho certeza que não teremos o apoio necessário às nossas pautas.
Quanto mais conteúdo de ciência, melhor. Ou não?
Em um vídeo publicado na página do Youtube do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT), Yurij Castelfranchi, professor associado do Departamento de Sociologia da UFMG, defendeu de forma clara algo que vem sendo pauta do seu trabalho na DC há muitos anos. A mera alfabetização científica não irá trazer benefícios significativos para o maior convencimento do público sobre temas afetados pela desinformação científica. Segundo Yurij, com base em sua pesquisa sobre percepção de brasileiros e brasileiras relativa às mudanças climáticas
“Para grupos minoritários que foram vítimas de desinformação a gente viu esta relação bastante mais forte com estes valores políticos, morais, do que com a mera alfabetização científica. Então a mensagem precisa focar não só nesse aspecto de passar os dados, os fatos científicos, mas nessa dimensão política. (…) Algumas pessoas são mais vulneráveis à desinformação não porque não tem acesso à informação, mas porque associam este tema da mudança climática a posições políticas com as quais ele discorda”
Complicado né? Como fazemos então para as pessoas entenderem a escala de temas como a emergência climática, sem o foco no conteúdo científico que demonstra a gravidade do problema? Bem, para o filósofo Michael Sandel, o problema é da própria ciência e a saída está em entendermos, primeiro, que o problema existe. Em uma entrevista recente para o jornal Folha de SP Sandel defende que
A ciência é, sim, crucial para embasar as decisões, mas é preciso participação democrática —e as lideranças não podem usar o discurso científico como forma de escapar de suas responsabilidades. A política da mudança climática é um exemplo de como algo focado nas elites rapidamente vira um discurso tecnocrático quanto ao meio ambiente, que pode reforçar a polarização.
Há um jeito de organizar a economia e conduzir as políticas públicas que leva os cidadãos a se sentir sem voz. É uma política que trata as questões econômicas e ambientais como algo técnico, que só diz respeito aos especialistas.
Sandel é bem enfático e deixa claro a parcela de culpa da própria ciência, achando que sozinha resolverá todos os desafios da humanidade. Ele continua na entrevista usando o exemplo a pandemia e como o discurso da ciência foi ao mesmo tempo essencial para nos tirar do buraco, e excludente para uma boa parcela da população. E, claro, como isso foi utilizado pela extrema direita para ganhar o jogo político.
Vimos esse discurso tecnocrático durante a pandemia, quando representantes das elites diziam que só estavam "seguindo a ciência", o que é um jeito de escapar das responsabilidades. Claro que é importante seguir a ciência no meio de uma pandemia ou da mudança climática —mas é um erro pressupor que a ciência sozinha pode realizar as avaliações políticas necessárias.
Por exemplo, durante a pandemia, a ciência não podia resolver se deveríamos fechar as escolas e por quanto tempo. Esse era um julgamento político, que teve que ser debatido pelos cidadãos dentro do processo democrático —e quem tomou as decisões teria que assumir responsabilidade por elas.
Não adianta só dizer que se está seguindo a ciência. No caso da política climática, a ciência precisa informar as decisões que vamos tomar, mas essas medidas precisam ser debatidas entre as pessoas implicadas nelas. Pois isso envolve negociações, questões distributivas, um debate sobre quem vai pagar o preço da transição para a economia verde… E por aí vai.
Saindo um pouco da ciência em si e retornando para o contexto político atual, Sandell volta a ser, na minha opinião, certeiro. E mostra como o racha entre o progressismo e a extrema direita tem uma raiz importante no ressentimento contra as universidades e a produção de conhecimento científico. Sandel, autor de livros como A Tirania do Mérito e O Descontentamento da Democracia, afirma que
O que nos trouxe a esse momento tão polarizado é a insistência das elites políticas de que são especialistas ou que estão amparadas por especialistas. Com isso, fica implícito que quem discorda ou está mal informado ou é ignorante. E que, portanto, essas pessoas não estariam qualificadas a ter voz.
É o mesmo que ocorreu com a dignidade da classe trabalhadora, deteriorada pela financeirização da economia, a terceirização do trabalho, tudo em nome dos especialistas que diziam que isso seria bom para todos.
Se repetimos essa postura tecnocrática no combate à mudança climática, teremos outra vez as elites olhando os cidadãos de cima, dizendo que estão só seguindo a ciência.
Tá bom. Mas temos propostas de saída?
Acho que devemos começar do começo. O que pretendemos como movimento de divulgação científica? Queremos convencer os outros sobre a importância de pautas apenas porque a ciência diz? Se queremos mudanças de posicionamento no principal problema do mundo atual, o único que realmente importa neste século, precisamos de muito mais que isso (sim, tô falando da emergência climática). Somos divulgadores em grande parte com formação científica. Defendemos argumentos lógicos, teorias, hipóteses calcadas em fatos. Fomos treinados para isso. Encarar algo que claramente é falso, mas encanta, é nosso calcanhar de Aquiles, como disse o linguista e pesquisador em semiótica Paulo Demuru. Não conseguimos, travamos. Fazemos chacota com o adversário, com a ideia dele, com ele. Fazemos vídeos bem humorados que fazem os seguidores, já fãs da ciência, rirem e se divertirem com o absurdo. Jogamos os ignorantes para fora do nosso clubinho. Sabe qual o problema? Os ignorados são cidadãos. E votam. E influenciam outros. Não adianta ficar espantado depois que um negacionista da ciência for eleito.
Temos, urgentemente, que sair do discurso do contra, para o propositivo. Pensar em pautas concretas, que mudam a vida das pessoas. Que elas possam entender profundamente como isso vai afetar elas. Recentemente vimos a explosão do movimento VAT no Brasil (Vida Além do Trabalho) que uniu boa parte do campo progressista em uma pauta que é fácil de ser entendida e afeta muita gente. Quais pautas unificariam a divulgação científica de forma propositiva e inclusiva? Tenho certeza que não é falar mal da astrologia. Muito menos da psicanálise.
O pesquisador Yurij Castelfranchi defende pensarmos em campanhas de divulgação científica mais direcionada para diferentes públicos, construídas com base no que realmente sabemos que influencia a opinião das pessoas. O cientista político Marcos Nobre defende que precisamos sair do paradigma de apenas reclamar e achar que vai passar. A antropóloga Rosana Pinheiro-Machado defende que precisamos ser menos puristas de conhecimento, pensar na inclusão de grupos que estão fora. Eu defendo que a empatia deve ser a base para qualquer projeto de Divulgação Científica que tenha preocupação social. Não temos receita de bolo, mas podemos seguir rumo ao que tem mais embasamento com base em pequisas das ciências sociais e políticas, como bons cientistas que somos.
O que eu tenho certeza é que a ciência precisa buscar novos caminhos para incluir quem está fora. Precisa ir além um movimento de produção de conteúdo, de influenciadores de conteúdo, que buscam apenas simplificar, “traduzir” a ciência. De apenas focar no debunking de “pseudociência” na internet. Estamos enxugando gelo achando que somos heróis e heroínas. Para este novo momento político do mundo precisamos de uma divulgação científica com foco além do conteúdo, além das ciências consideradas como "duras". Precisamos cada vez mais das ciências humanas, sociais, políticas. E claro que das artes. Para mim as artes são o nosso caminho para buscar a sensibilidade pelo que nos une como seres humanos. É a cola que vai nos ajudar a sair do buraco que a extrema direita está nos metendo. Não é por acaso que o meu foco profissional em DC nos últimos anos é na relação entre ciência e arte.
Se não conseguimos convencer as pessoas através do duro, gélido e insosso conteúdo científico, eu coloco minhas fichas na arte e na política. Foi onde começamos a nos entender lá trás como cidadãos. A ciência deve se colocar no seu lugar como uma importante ferramenta, mas não é quem comanda este navio. Quer dizer, pelo menos se queremos que o navio siga o seu caminho, aos trancos e barrancos, e não afunde no oceano da desinformação produzida, estimulada e financiada pela extrema direita.
Excelente reflexão, Bento. Obrigado.
Seus textos são um oasis de sensatez em meio a um monte de certezas questionáveis. Adoro saber o que você pensa e já assinei a news!