
Depois de muito refletir decidi dar o meu posicionamento relativo ao financiamento da Divulgação Científica (DC) na internet, a partir do exemplo do caso recente que envolveu o cientista e divulgador de ciência Atila Iamarino. Participei da discussão de financiamento de blogs de ciência duas décadas atrás, então minimamente tenho lugar de fala. Atualmente sou servidor público estadual no RJ, técnico em divulgação científica (sim, este é o meu cargo) e continuo acompanhando de perto DC na internet, e esporadicamente participando de iniciativas como podcasts, coletivos de conteúdo de ciência e a organização do Encontro Brasileiro de Divulgadores de Ciência (que inclusive vai ter sua terceira edição este ano). Utilizo redes sociais para divulgar meu trabalho de DC desde a época que o twitter ainda era limitado por 140 caracteres e não tinha sido destruído por um bilionário. E, sem dar spoiler, acredito que as redes sociais estão contribuindo, e muito, para ajudar no financiamento da DC na internet, mas com um alto custo. Mas bem, vamos ao que interessa.
Em primeiro lugar, precisamos sim de verba para manter iniciativas independentes de DC. Produzir conteúdo de ciência com qualidade, buscando fontes confiáveis e que seja atrativo requer não só dinheiro, mas tempo e equipe multidisciplinar (se você não quer ser tudólogo e achar que sabe tudo sobre qualquer tema científico). Desde a época de “ouro” dos blogs de ciência (2000~2010) já discutíamos sobre financiamento, sendo tema de discussões do I e do II Encontro de Weblogs Científicos em Língua Portuguesa (eventos que participei presencialmente e registrei no meu blog). Buscávamos aprender com especialistas de blogs famosos quais seriam as táticas mais eficientes. Adsense, posicionamento na pesquisa do Google e outras ferramentas da idade da pedra da internet. E claro, patrocínio. Considerando blogs, ainda mais de ciência, era quase impensável conseguir um patrocínio de uma empresa. Mas agora com o domínio das redes sociais e dos influenciadores as marcas buscam pessoas físicas e iniciativas independentes para investir. E vestir a camisa deles.
Se precisamos de dinheiro, empresas estão dispostas a pagar cientistas e divulgadores. Podemos aceitar financiamento de qualquer fonte? Segundo regras de ética na publicidade, sim. Desde que bem sinalizado e explicado para a audiência, não há ilegalidade. Mas todo e qualquer financiamento influencia no seu posicionamento. Ainda mais se ele representa boa parte do que te mantém, se você não tem outra fonte de renda. "Ah, mas foi algo pontual. Só uma peça de publicidade". Mas como confiar em uma pessoa que está aberta a negociar com uma empresa em seus próximos posicionamentos? A pessoa vai ir contra futuras (e prováveis) propostas de financiamento? Tem realmente liberdade para tratar o assunto da forma como se deve? Digo se você realmente acredita que a divulgação científica deve ter impacto social e político. Que deve ajudar o público a ter embasamento para entender o nosso impacto no mundo. Temos que cobrar sim de forma diferenciada uma influenciadora de maquiagem, moda, vídeo game ou ciência. Falar sobre ciência requer um distanciamento e independência maior de marcas e empresas, ainda mais se você quer ter credibilidade sobre o tema.
O jornalismo moderno já está discutindo esta questão faz tempo. Iniciativas independentes buscam financiamento de diferentes formas, trazendo receitas de pessoas físicas, editais nacionais e internacionais, empresas. Não depender de apenas uma fonte é algo sempre lembrado, tanto para a iniciativa ser financeiramente mais saudável quanto para que não tenha um “patrão”, que possa influenciar na linha editorial mais diretamente. Mas sabe uma coisa que raramente vemos? Jornalistas, como pessoas físicas, endossando uma empresa, de forma direta. Quando acontece, vira notícia e até repreensão pelas empresas jornalísticas. Por que? Simples. Se prezamos pela opinião independente de um jornalista, não queremos uma relação direta da pessoa física com uma empresa sem ser a que ele está empregado. Principalmente de uma empresa que tem interesse direto em temas que o jornalista lida profissionalmente. Não queremos essa dependência direta. Já imaginaram um jornalista de ciência que cobra mudanças climáticas sendo garoto propaganda da Shell? Divulgadores de ciência e cientistas não são jornalistas, mas acredito que o paralelo pode ser feito pois o público vê em nós pessoas que prezam pelo método científico, que são independentes da influência financeira das grandes empresas e que prezam fatos. Não é?
Então é errado divulgadores de ciência aceitarem financiamento de empresas? Não necessariamente. Mas existem diferentes formas disso ser feito. E cada uma apresenta um grau de comprometimento. Talvez o de maior comprometimento, na minha opinião, seja exatamente o que o Atila fez, emprestar sua imagem para uma peça publicada no canal da empresa, com texto da empresa, defendendo o indefensável para qualquer pessoa que minimamente tem conhecimento sobre mudança climática e o papel dos combustíveis fósseis (se você ainda não viu, assista aqui e reflita). Não é um patrocínio de um vídeo no canal pessoal, onde há liberdade sobre o conteúdo. Ou divulgação de algum evento ou novo produto, pontual e, novamente, explicado e contextualizado, com suas próprias palavras. Seria algo questionável, algo a ser explicado e que poderia ser descolado da opinião pessoal, da pessoa física em si e da liberdade editorial da iniciativa. Mas, da maneira como foi no caso do Atila e Shell, isso é praticamente impossível.
Se tem algo que aprendemos na história recente é que empresas que dependem de produtos altamente prejudiciais a saúde (indústria do tabaco), ao meio ambiente (indústria do petróleo) e a ambos ao mesmo tempo (indústria dos agrotóxicos) usaram, comprovadamente (veja os links), a imagem e o trabalho de cientistas para criar um escudo de que tudo o que fazem tem comprovação científica. Empresas pagam cientistas para produzirem trabalhos enviesados que confirmam que os produtos dela são ótimos. Empresas pagam políticos para usarem estes trabalhos como base de políticas públicas. Empresas pagam cientistas para servirem de peças de propaganda de como os seus produtos são seguros. Tenho absoluta certeza que o Atila sabe desse histórico de conflito. Não questiono o motivo financeiro e pessoal que levou ele a aceitar a proposta, mas torna o caso ainda mais delicado perante a comunidade não só de divulgadores de ciência/cientistas, mas pessoas engajadas na pauta de mudança climática, que fazem um trabalho duro há décadas para que o público em geral reconheça o dano causado pela indústria de combustíveis fósseis.
Precisamos sim discutir financiamento da divulgação científica na internet, mas tenho certeza que vender a imagem da pessoa física de um cientista para dar legitimidade a uma empresa como a Shell não é o caminho certo. Vejo que Atila seguiu um caminho que jornalistas famosos brasileiros trilharam como Fátima Bernardes, Pedro Bial e Evaristo Costa, demonstrado com grande clareza nesta reportagem. Empresas viram que hoje em dia podem comprar a imagem de jornalistas para validar seus produtos e táticas. No caso de cientistas e divulgadores compram, além da credibilidade, a chancela do cientista e da ciência de forma indireta. Assim como negacionistas usam a autoridade da ciência quando lhes convém, as empresas sabem usar muito bem isso. E a troco de dinheiro de pinga, para elas. Mas para os cientistas e divulgadores pode muitas vezes ser a única maneira de manter o seu trabalho na internet, que demonstrou ser extremamente relevante na recente epidemia de COVID.
A questão principal pra mim é se o público continuará a confiar nas análises de quem vende sua imagem para empresas como a Shell. Certo ou errado, é um comprometimento que cada um deve decidir se está disposto a aceitar. É cruzar a linha entre o compromisso com informação científica e o entretenimento puro, como no caso dos jornalistas citados anteriormente. Precisamos decidir se queremos ser divulgadores de ciência ou apenas criadores de conteúdo de ciência, sem se preocupar com a consequência de validar táticas de empresas com grande impacto na nossa vida e de todos os outros seres vivos.
Para mim a fronteira é clara. Espero que também seja para outros divulgadores e cientistas.
Bento, sua clareza e respeito são muito admiráveis, viu. gostei muito dos pontos que você levantou.
Luiz, meu amigo, venho tentando evitar esse tema por respeito ao Átila e por, assim como vc, saber das dificuldades que enfrentamos desde sempre na divulgação. Infelizmente acho que uma linha perigosa foi cruzada.
Acho que foi um duro golpe no capital ético que ele acumulou. Mas não sei o quanto isso impacta do grosso do público, sabe?
Talvez essa seja uma discussão que só ressoe entre nós e entre um limitado grupo de pessoas mais ligadas aos assuntos que circundam a atitude do Átila.
Talvez ele tenha ponderado que valia a pena perder esse capital social com o grupo de divulgadores e com pessoas mais progressista, sabendo que é bem provável que para o público médio, distante destas discussões, nada mudou.
Dito isso, acho arriscado no longo prazo.
Átila se destacou pelo seu trabalho na pandemia, alinha cruzada coloca esse trabalho todo em risco e municia o grupo negacionista de argumentos que, na época, foram usados, mas não colaram justamente pela postura ética dele.
Como gosto de falar para meus alunos. A ética é uma corda bamba. Acho que nosso colega caiu dessa corda.